Uma sonata e uma ladeira para o underground da vida

Uma sonata e uma ladeira para o underground da vida

16 de janeiro de 2022 0 Por Haroldo Barbosa Filho

Quem ficaria ouvindo algo como a Sonata número 2 de Brahms, ao lado de uma janela defronte a uma ladeira de periferia, escutando a todo momento freadas bruscas, carros desfilando com o escapamento aberto e motoqueiros empinando suas possantes máquinas?

A resposta é muito óbvia: ninguém.

Foi justamente o que pensei: que era ninguém, sequer merecendo ser chamado de merda, uma vez que nem conseguia passar o tempo com meus botões e os instrumentos clássicos, enquanto os seres à minha volta se divertiam a exalar pela ladeira a merda que tinham na cabeça, mostrando que estavam vivos com suas peripécias que alegravam seus iguais e incomodavam quem não as apreciava. Eles eram os donos da rua e do que estava em volta. Tudo era só deles.

Mas… Quem não apreciaria essas demonstrações de social e politicamente correta falta de civilidade, num lugar onde a própria palavra não fazia parte do vocabulário? Ninguém, ora!

Por isso, permanecia ali, ao lado da janela, apenas olhando mais um macho alpha em busca da admiração de alguma jovem que poderia julgá-lo um herói viril por conseguir, de modo intrépido (outra palavra fora do contexto da galera), erguer ou promover urros em seu cavalo mecânico, em busca de uma grande conquista.

Aumentar o volume do aparelho não iria resolver nada, mas colocar em risco os tímpanos. Dar um berro para alertar aquele povo também não, porque não seria ouvido ou, caso fosse, me meteria em confusão.

O jeito era dar um tempo para Brahms e ficar ali, acompanhando as expressões típicas do atual momento da humanidade e à espera de um movimento em allegro vivace daquela orquestra.

Ela surgiu. Em dado momento, um carro resolveu subir a ladeira ao mesmo tempo em que outro descia. Rua apertada: claro que os dois iriam ficar frente a frente e um deles teria que dar marcha à ré para desobstruir o caminho.

Nenhum deles se propôs a isso, suprema humilhação em tempos de profundo egoísmo e falta de respeito, onde o próximo tornou-se apenas artigo para uso e descarte.

As cenas seguintes foram dignas de um daqueles filmes underground que passavam nos cinemas da boca do lixo no final dos anos 60: o bate-boca, as ameaças, a violência explícita, o som de sirenes e, por fim, o silêncio. Tudo, porque um dos motoristas queria passar por cima do outro, continuando a subir pela ladeira como se estivesse subindo na vida e seu oponente de ocasião, prosseguir em sua descida a qualquer custo.

Decerto, não estamos mais nos anos 60 com sua contracultura. Vivemos o resultado dela, inegável evolução de uma tendência para subverter valores que poderiam – ou deveriam – ser pétreos, como compreensão, fraternidade, concórdia e paz. Uma evolução baseada em slogans recheados de palavras doces como liberdade, paz e amor. Porém, vazias, ficando de lado seu verdadeiro significado. Deu no que deu: a promoção da divisão entre povos e raças, além do culto ao não-pensar e o recrudescimento das tiranias.

Este é o underground tão enaltecido nos guetos de ontem e que está espalhado pelo mundo todo, dos bairros afastados das capitais aos seus centros, nas Américas, Europa, Ásia e o escambau. Afinal, onde há um canto em que se possa ouvir Brahms e, mesmo sem entender profundamente de música, simplesmente procurar nas notas da sonata um pouquinho de paz interior? Talvez, somente em uma campa de cemitério, aliás, espaço adequado para quem se contrapõe ao establishment e, ainda por cima, tem a ousadia – senão, a insanidade – de colocar ideias assim no papel, ao invés de se preocupar com o que realmente interessa, com o que de fato é aplaudido e dá fama… Por exemplo, uma boa letra de funk.

Ah, sim: a discussão entre os dois audazes e antenados motoristas terminou com para-choques arranhados, uma porção de palavrões e sopapos, o trânsito desimpedido pela polícia na rua estreita após quase uma hora… Além de ter se transformado em assunto, quem sabe, para a plateia tomar uma bebida cujo nome é parecido – e bem mais agradável – que o expoente da música clássica, Brahms.

No atual mundo liberto (sic), é desejável e, não se engane, será obrigatório seguir a massa, conforme as regras do underground. Não é aceitável ouvir esse tal de Brahms que fez músicas chatas, sem o menor sentido… Fez, enfim, músicas para ninguém…

Haroldo Barbosa Filho

Compartilhe: